8.9.17

Amaryllis-Dita


Nos últimos tempos tenho pensado muito sobre a morte. Talvez seja melhor dizer, sobre as mortes. Algumas tão absurdas, que mal consigo falar a respeito...  Não é sobre essas que quero falar hoje.
Um dia desses dormi pensando no morrer, no momento em que se findam nossas energias, completando o ciclo iniciado com o nascer. Pensei longamente naquela morte que constitui a história de todos nós. No quanto ela também é incompreensível, nos deixa perplexos, indignados, sem rumo mesmo por algum tempo. Pensei também no quanto a morte de alguém que amamos pode nos transformar profundamente. Mas o que me ocupou mesmo foi refletir  sobre o quanto os nossos mortos permanecem em nós, no quanto essas ausências-presenças dão significados a coisas quase imperceptíveis do cotidiano. Assim, finalmente, me aproximo da história que quero contar.
Cresci na periferia da zona leste de São Paulo numa época em que vizinhos eram meio parentes. E na rua em que morei nós, de fato,  vivíamos como uma grande família. Éramos todos um pouco filhos, sobrinhos e netos dos moradores mais velhos da vila. E eles eram para nós como mães, pais, tios, avós. Alguns permanecem conosco; com eles, mesmo que de longe, ainda hoje cultivamos os laços construídos na adversidade da vida de migrantes que chegaram em São Paulo buscando uma vida mais digna para si e para os filhos que viriam. Homens e mulheres jovens que deixaram pais, irmãos e amigos em Minas, Sergipe, Recife, Santa Catarina, interior de São Paulo. Havia também os imigrantes, um espanhol, os portugueses....Todos, de alguma forma, procurando fincar suas raízes em uma terra, até então, desconhecida.
Na rua Luís Asson, antiga Mercedes, viveram personagens que fizeram e farão sempre parte de nossas vidas.  Laureano, Raimundo, Luís, Joaquim, José, João, Carlos, Francisco. Edi, Maria, Elvira, Dolores, Vera, Teresa, Antonia, Guilhermina, Benedita. Para cada um deles poderia (e quem sabe?) escrever uma história. A de hoje é dedicada à Benedita.
 A Dona Dita foi uma das primeiras moradoras de nossa rua. Viu nossas casas surgirem ao redor da sua. Acompanhou a gente crescer dentro e fora da barriga de nossas mães, esteve ao lado delas quando pariram, ajudou a cuidar de todos nós. Por isso, com autoridade legitimada também nos deu broncas, botou de castigo, puxou nossas orelhas, nos deu colo e ficou inscrita em nossas memórias. Isso tudo já seria suficiente para eu querer contar a história dela. Mas Dona Dita foi (e será sempre) minha madrinha. A Madrinha, como sempre a chamei e até hoje me refiro a ela. Não sou mais católica, mas ser madrinha ou afilhada continua sendo assunto sério pra mim.
Bem, o fato é que além dos mimos e broncas distribuídos por Dona Dita para todos nós, crianças da Luís Asson, eu sempre tive uma cota, que considerei especial, de afagos e correções. Me lembro dessas últimas de vez em quando. Mas gosto mesmo é de rememorar os mimos: o dia em que ela me levou para furar as orelhas para colocar os brincos que ganhei de meu pai, no mesmo ano em que ela me deu um aventalzinho todo listado de azul e com três bolsinhos. Não me esqueço de uma toalha de banho vermelha, que me acompanhou por muito tempo.
Veio pelas mãos dela meu primeiro dicionário. Com ela aprendi a  gostar dos   livros de História Antiga e Medieval. Essas duas obras povoaram meu imaginário de menina e me instigaram a cavoucar em busca de palavras e de histórias pela vida afora.  Mas o presente que está na origem desse texto é um vaso de Amaryllis que recebi da Madrinha há mais de 25 anos. Desde que chegou às minhas mãos e durante muitos anos, duas flores desabrochavam com 2 ou 3 dias de diferença entre o primeiro e o segundo botão, antecipando a primavera no meu quintal. Algum tempo depois da morte de Dona Dita, a Amaryllis parou de florir. Não morreu; as folhas continuaram verdes e viçosas, só as flores pareciam ter perdido o rumo ou o jeito.
Há alguns dias, minha mãe, que nunca desistiu de achar no  seu quintal um lugar em que a Amaryllis pudesse reencontrar forças para florir, me avisou que estavam lá: dois botões como nos velhos tempos. No domingo fui ver as flores. Fiz festa, tirei fotografias, conversei com elas, chamando-as pelo nome que escolhi, há quase um quarto de século, para batizá-las: Amaryllis-Dita. Foi então que minha mãe lembrou que as flores nascidas nesse vaso sempre chegaram nos últimos dias de agosto ou nos primeiros de setembro. Concluí, então, que elas fazem uma espécie de homenagem à data em que a Madrinha partiu, que é também um jeito de lembrar o quanto ela continua viva em mim, em nós. 

setembro de 2017
do livro "Crônicas memórias"


2 comentários:

Unknown disse...

Obrigada Neide por lembrar da minha avó com tanto carinho. Que saudade!!

Dj Rafael Lima disse...

Quanto carinho Neide! Muito obrigado pela memória e o belo texto! Eu e meu irmão também levamos conosco boas lembranças! Jamais esqueceremos do fogão a lenha e o feijão feito nele da Dona Nina. Saudades