Amaryllis-Dita
Nos últimos tempos tenho pensado muito sobre a morte.
Talvez seja melhor dizer, sobre as mortes. Algumas tão absurdas, que mal
consigo falar a respeito... Não é sobre
essas que quero falar hoje.
Um dia desses dormi pensando no morrer, no momento em
que se findam nossas energias, completando o ciclo iniciado com o nascer. Pensei
longamente naquela morte que constitui a história de todos nós. No quanto ela
também é incompreensível, nos deixa perplexos, indignados, sem rumo mesmo por
algum tempo. Pensei também no quanto a morte de alguém que amamos pode nos
transformar profundamente. Mas o que me ocupou mesmo foi refletir sobre o quanto os nossos mortos permanecem em
nós, no quanto essas ausências-presenças dão significados a coisas quase
imperceptíveis do cotidiano. Assim, finalmente, me aproximo da história que
quero contar.
Cresci na periferia da zona leste de São Paulo numa
época em que vizinhos eram meio parentes. E na rua em que morei nós, de fato, vivíamos como uma grande família. Éramos todos
um pouco filhos, sobrinhos e netos dos moradores mais velhos da vila. E eles
eram para nós como mães, pais, tios, avós. Alguns permanecem conosco; com eles,
mesmo que de longe, ainda hoje cultivamos os laços construídos na adversidade
da vida de migrantes que chegaram em São Paulo buscando uma vida mais digna
para si e para os filhos que viriam. Homens e mulheres jovens que deixaram
pais, irmãos e amigos em Minas, Sergipe, Recife, Santa Catarina, interior de
São Paulo. Havia também os imigrantes, um espanhol, os portugueses....Todos, de
alguma forma, procurando fincar suas raízes em uma terra, até então,
desconhecida.
Na rua Luís Asson, antiga Mercedes, viveram
personagens que fizeram e farão sempre parte de nossas vidas. Laureano, Raimundo, Luís, Joaquim, José,
João, Carlos, Francisco. Edi, Maria, Elvira, Dolores, Vera, Teresa, Antonia,
Guilhermina, Benedita. Para cada um deles poderia (e quem sabe?) escrever uma
história. A de hoje é dedicada à Benedita.
A Dona Dita
foi uma das primeiras moradoras de nossa rua. Viu nossas casas surgirem ao
redor da sua. Acompanhou a gente crescer dentro e fora da barriga de nossas
mães, esteve ao lado delas quando pariram, ajudou a cuidar de todos nós. Por
isso, com autoridade legitimada também nos deu broncas, botou de castigo, puxou
nossas orelhas, nos deu colo e ficou inscrita em nossas memórias. Isso tudo já
seria suficiente para eu querer contar a história dela. Mas Dona Dita foi (e
será sempre) minha madrinha. A Madrinha, como sempre a chamei e até hoje me
refiro a ela. Não sou mais católica, mas ser madrinha ou afilhada continua
sendo assunto sério pra mim.
Bem, o fato é que além dos mimos e broncas
distribuídos por Dona Dita para todos nós, crianças da Luís Asson, eu sempre
tive uma cota, que considerei especial, de afagos e correções. Me lembro dessas
últimas de vez em quando. Mas gosto mesmo é de rememorar os mimos: o dia em que
ela me levou para furar as orelhas para colocar os brincos que ganhei de meu
pai, no mesmo ano em que ela me deu um aventalzinho todo listado de azul e com
três bolsinhos. Não me esqueço de uma toalha de banho vermelha, que me acompanhou
por muito tempo.
Veio pelas mãos dela meu primeiro dicionário. Com ela
aprendi a gostar dos livros
de História Antiga e Medieval. Essas duas obras povoaram meu imaginário de
menina e me instigaram a cavoucar em busca de palavras e de histórias pela vida
afora. Mas o presente que está na origem
desse texto é um vaso de Amaryllis que recebi da Madrinha há mais de 25 anos. Desde
que chegou às minhas mãos e durante muitos anos, duas flores desabrochavam com
2 ou 3 dias de diferença entre o primeiro e o segundo botão, antecipando a
primavera no meu quintal. Algum tempo depois da morte de Dona Dita, a Amaryllis
parou de florir. Não morreu; as folhas continuaram verdes e viçosas, só as
flores pareciam ter perdido o rumo ou o jeito.
Há alguns dias, minha mãe, que nunca desistiu de achar
no seu quintal um lugar em que a Amaryllis
pudesse reencontrar forças para florir, me avisou que estavam lá: dois botões
como nos velhos tempos. No domingo fui ver as flores. Fiz festa, tirei
fotografias, conversei com elas, chamando-as pelo nome que escolhi, há quase um
quarto de século, para batizá-las: Amaryllis-Dita. Foi então que minha mãe lembrou
que as flores nascidas nesse vaso sempre chegaram nos últimos dias de agosto ou
nos primeiros de setembro. Concluí, então, que elas fazem uma espécie de
homenagem à data em que a Madrinha partiu, que é também um jeito de lembrar o
quanto ela continua viva em mim, em nós.
setembro de 2017
do livro "Crônicas memórias"