12.4.15

Os livros vermelhos de minha infância


  Jamais esquecerei o dia em que o inesperado tesouro chegou à nossa casa. Entre deslumbrada e incrédula, vi surgirem, diante dos meus olhos, 16 volumes encadernados de vermelho com letras douradas.
Junto com a enciclopédia a sala ganhou também uma estante: à direita, a televisão; à esquerda, os livros, nobres lombadas cuidadosamente expostas. No final da elegante fileira, dois volumes com capas creme, detalhes em ouro e vermelho.
Daquele dia em diante nossa vida ganhou novos rituais. Dúvidas insistentes nos inquietavam: “quantos são os estados brasileiros?”, “quem foi José do Patrocínio?”, “quais são os sintomas da anemia?” Como saber sem recorrer a um dos imponentes volumes da Barsa?
Então, autorizado pelo pai ou pela mãe, um de nós retirava cerimoniosamente o livro da prateleira. Com ares de gente importante, localizava o verbete e lia para os demais, que mal respiravam para não perder nenhuma palavra.  Olhávamos um para o outro, admirados. Volume devolvido ao lugar, corríamos para brincar no quintal entre bananeiras, goiabeiras, tropeçando no cachorro e assustando as galinhas com nossa gritaria.
Quando alguém batia palmas junto ao portão e pedia para “fazer uma pesquisa”, novamente um de nós era eleito: identificava o tema e encontrava o livro. O vizinho era convidado a sentar-se à mesa da cozinha, que se transformava em biblioteca. Voltávamos às nossas brincadeiras, sem a costumeira algazarra por respeito ao visitante.
Os rituais se multiplicavam. Entre eles o meu predileto era o mais profano: aos sábados todos aqueles livros deveriam ser limpos e realinhados na estante. Então, sentava-me no chão e, enquanto amorosamente tirava a poeira de cada volume, acariciava capas, descobria texturas, folheava-os, lia clandestinamente um trecho aqui, outro ali.
Lembro-me ainda dos longos verbetes copiados: folhas e folhas de papel almaço, cobertas de letras dolorosamente traçadas ocuparam horas de meus dias de estudante.
Só muito tempo depois eu soube do esforço feito por meu pai para que nós tivéssemos a Barsa em nossa casa. Luxo que ele prolongou, por mais de duas décadas, comprando o “Livro do ano”, que atualizava a coleção publicada em 1970.
Os anos se passaram, eu e meus irmãos terminamos nossa formação básica, cada um seguiu seu rumo na vida. A enciclopédia, abandonada, acabou perdendo seu lugar na estante da sala.
Confesso que há muito eu não retornava a essas lembranças. Então,  surpresa, soube que a Barsa permanece viva, convive com o facebook, com o google e a wikipedia. E mais, descobri que desde cedo, sem sequer imaginar, eu já era conduzida por seguros e eternos mestres. Imaginem: Antonio Candido, Houaiss, Niemeyer, Milton Santos foram alguns dos intelectuais que recebíamos em nossa casa. E como é costume da minha gente, vencidas a timidez inicial e as primeiras cerimônias, depois de começadas, boas conversas não acabam mais.
Ainda hoje os livros vermelhos de minha infância continuam ocupando os mais nobres lugares de minhas salas internas. E, como a menina que fui, continuo fiel aos rituais. Agora mesmo, escrevo sob os olhares atentos de uns tantos volumes que se curvam na pontinha da estante para espiar se não me esqueci deles ao registrar essas memórias.
                                                                                   Neide A. de Almeida (2011)